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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O beijo


Tum! Tudo estava daquele jeito que não existe palavra para definir: nem claro, nem escuro; nem quente, nem frio; nem tudo, nem nada. Vazio. Só existia ela, fitando-me com seus olhos morenos.
Ela não se mexia, não sorria, não falava e nem respirava. Apenas despia-me com seu olhar penetrante. Sua graciosidade imponente me deixava paralisado; eu sabia que se à quisesse deveria caminhar até lá. Ela, porém, estava convicta a não mover-se um centímetro e esperar-me pelo tempo que fosse preciso. Não tinha pressa.
Seu corpo inteiro era um convite aberto: cada curva milimétricamente projetada para minhas aventuras; o olhar forte, que fazia com que eu precisasse me segurar para não cair de joelhos ali, diante dela; sua delicadeza lânguida e estática, como uma estátua de gelo; seus lábios corados e pulsantes destacavam-se de tudo naquele ambiente. Pediam para ser provados e prometiam um prazer supremo, como eu jamais provara em minha vida. Ela inteira me atraia como o pólen atrai a um inseto, de tal maneira, que já não me era possível sequer raciocinar. Arrisquei um passo em sua direção.
Ela gostou. Gostou tanto, que me deu um sorriso seco, apenas para me encorajar. Foi o bastante: incendiou minha alma, meus sentidos e minha razão. Eu queimava inteiro e, alucinado, não pude conter meus pés que se apressaram em cobrir a distância que ainda nos separava.
A cada passo, um novo incêndio. Ela era meu único desejo. Finalmente estávamos cara a cara e eu pude, enfim, tocar a sua pele. Para o meu espanto, era fria: fria como apenas a palavra fria poderia saber... Ou talvez eu estivesse quente demais, mas o único fato era a sua gelidez. Era gostosa. Era uma sensação única e viciante. Eu, que antes queimava, agora me sentia mais ameno. Eu me sentia completo no contato de nossas mãos.
Eu precisava de mais. Muito mais. Uma vez provado aquele prazer, eu não poderia mais deixá-lo. Puxei-a para junto de mim, colando nossos corpos, e beijei-a com toda a sofreguidão de um cão prestes a morrer de fome, ao devorar as sobras que lhe salvariam a vida. Beijei-a.
Sua boca era ainda mais alucinante que sua pele. Delirei de prazer. Éramos completos: éramos gelo e fogo unindo-se em um só. Ela roubava meu calor e me dava sua frieza. Devorei-a e fui por ela devorada! Estávamos tão fundidos que eu já nem sentia mais meu corpo, nem minha alma, nem eu mesmo, nem nada. Eu estava indo para o mesmo vazio que nos cercava... O que era bom, muito bom.
Foi assim que ela me seduziu e me obteve para sempre. Foi assim que eu soube que nunca mais eu sairia de perto dela. O resto já não me importava mais. O resto eram apenas as lágrimas de meus amigos, o fedor das velas e meu corpo atropelado.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Para sempre

Não resisti mais. Entreguei-me totalmente ao meu desespero e corri até o telefone. Agarrei-o com uma urgência de morte, disquei os números com um desespero fatal, ouvi o barulho da chamada com uma ansiedade apavorante. O que eu faria? E se ela atendesse? E se ela não atendesse? Talvez ela adivinhasse que era eu, como costumava fazer há tempos atrás.
Senti-me estúpido. Por que após tanto tempo, quando tudo seguia normalmente, esse desejo maluco me consumiu, como antes? Deve ter sido o “para sempre” que lhe disse tantas vezes, rendido aos encantos de seus beijos. Caí na pior das armadilhas do amor: a ilusão da eternidade! Totalmente envolto nessas artimanhas, jurei. Jurei com toda a minha alma que a amaria para sempre, que meu coração jamais seria capaz de bater por outra pessoa, e que eu não sofreria por ninguém mais, que não ela. Dito e feito: desafiei o poder das palavras e elas agora me fazem refém. Uma vez proferida, a palavra não volta jamais, tampouco suas conseqüências catastróficas. Agora eu sou obrigado a amá-la, mais do que tudo, até o dia de minha morte.
Até o dia da minha morte... É tempo demais! É um egoísmo sem tamanho, pois não me restará tempo para mais nada: nem mesmo para mim! Quando eu respirasse fundo, e sentisse como se, finalmente, houvesse encontrado a liberdade, essa necessidade me tomaria, exatamente como hoje, esmagaria minhas resistências e me jogaria novamente nesse fosso sem saída. Eu poderia até resistir e não procurá-la, mas o preço disso seriam os terríveis dias de tormenta, onde eu seria assolado pelo fogo lancinante que me torturaria até que eu caísse naquela mesma letargia temporária de sempre. E eis-me refém do “sempre” novamente. Sempre amante, sempre letárgico, sempre insatisfeito, sempre assolado.
Ela atendeu. ”Alô?”. Senti uma corrente elétrica percorrendo por meu corpo inteiro. “Alô?”. Aquele alô. O meu alô. O alô que eu já havia ouvido, no mínimo, três vezes ao dia. O mesmo alô que após algum tempo havia se transformado em “Oi amor!” e agora voltara a ser um alô.
“Quem fala?”. Quem fala? Quem fala? Como ela pôde não reconhecer o meu silêncio? Meu respirar? Seria possível que ela já tivesse erradicado qualquer lembrança dos meus trejeitos da sua memória? A idéia doeu. Doeu como apenas uma idéia ruim pode doer: como um corte profundo no cérebro... Na alma. Chorei. Não resisti ao grito de pavor que vibrava por todo o meu ser, o máximo que pude fazer, foi condensá-lo em uma única lágrima e uma fungada.
Ela respirou fundo do outro lado da linha. “É você, de novo? Quando é que você vai parar com isso? Já faz mais de um ano que terminamos!” Ela me reconheceu! Reconheceu minha lágrima e minha fungada. Por algum motivo, isso me causou prazer e realização. Eu ainda estava na memória dela. Um incômodo, mas, ainda assim, eu existia. E existiria assim para sempre! Sorri e desliguei o telefone.
Corri para o quarto e joguei-me sobre minha cama. Estava feito! A maldição estava confirmada. Como sempre, o “para sempre” continuava a nos assombrar: continuava quase matando-me de desejo, e também quase matava a ela, mas de irritação.
Esse é o problema com “para sempre”: é lindo quando dito entre beijos e devaneios, mas terrivelmente cruel ao não abandonar as ruínas daquilo que não deu certo. Essa sim é a verdadeira assombração.
De qualquer maneira, eu estava pronto para seguir minha vida por mais algum tempo, então me recompus, fui até a cozinha e beijei minha esposa. “Te amo” ela disse. “Para...” Interrompi-a antes que terminasse a frase. “É o bastante” disse eu, ao calá-la com um novo beijo.

Foto por: Tuane Eggers

domingo, 6 de setembro de 2009

À minha doce criança

Doce criança,
Por que queres sair
Se sabes que jamais irás conseguir
Levar para fora
Toda a beleza que tens aqui agora?


Doce criança,
Não adianta ficarmos tristes,
Nem mesmo sei porque tanto tu insistes!
Para esta alegria, eles ainda não estão prontos
Todas estas cores só os deixam mais e mais tontos.


Doce criança,
Não afogue teus olhos nessas lágrimas!
Não envenene teu coração com estas mágoas,
Se muito mais belos são os teus sonhos
E a vida explosiva em teus olhos risonhos!


Doce criança,
Por favor, tente sorrir.
Tu sabes que eles não podem te ouvir.
Não cantes lindamente com, até mesmo, teus ossos
Se os ouvidos deles não escutam como os nossos.


Doce criança,
Tu não precisas lutar nesta guerra.
Foge! Corre de volta para tua terra!
Aqui os problemas deles jamais irão te alcançar
Então respire, doce criança! Eis aqui o teu lugar.


Doce criança,
Prometa que não vais te esquecer de amar,
É doloroso, mas teu coração jamais deve parar.
Aguente firme! Não quero te ver sofrendo.
Quero apenas te ver tranquila, adormecendo.


Dorme, doce criança, dorme!
Dorme por mais dez anos!
De nada adiantam todos os teus planos!
Por ora, esqueça a isso tudo
E quando, por fim, acordares fundarás um novo mundo.

Foto por: Tuane Eggers

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Soneto do esquecimento

Há muito tempo, já não sei mais quem tu és.
Esqueci teu nome!
Já controlo a minha fome,
Que me levava aos teus pés.

Tua vida já não é mais minha,
Teus feitos já não me atormentam mais,
Nem teus meios, teus inícios, teus finais.
Nem a estrada por onde tua solidão caminha.

E assim havemos de ser:
Solidão, liberdade,
E apenas os restos dos sonhos da nossa mocidade.

Mas se eu me esquecesse de te esquecer
Por um só dia,
Tenho certeza, enlouqueceria.

Foto por: Tuane Eggers

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Adeus!

Naquela mesma rua, onde um momento os havia marcado, numa madrugada cruelmente única e igualmente marcante, um garoto está sentado no meio fio ao lado de uma garota, que também esta sentada e segura em frente aos seus joelhos uma mala, à que cutuca continuamente o couro com sua patela.
Hoje ela sepultaria uma perseguição amorosa que arrastara-se durante dois anos. Ela fora uma guerreira, lutara por seus sentimentos até a (além da) exaustão. Ele fora um admirável cavalheiro, recusara a todas as suas investidas com um gentil sorriso no rosto e a inocência da crença em uma amizade exagerada. Mas nesta noite não havia mais espaços para mentiras, nem para imagens errôneas. Hoje a guerreira cansara de lutar e o cavalheiro já não podia mais fingir que não entendia. Hoje seria o triste fim de uma história rubro-negra, de amor e decepção, dotada de toda a beleza que contém a soma da dor, da paixão e do fracasso.
O nervosismo pairava no ar como uma densa nuvem e envolvia os dois jovens. Mais algumas horas e ela embarcaria em um ônibus lento e fumacento, para bem longe dali. Ele não. Ela amava-o mais do que tudo e muito mais do que acreditaria ser capaz de amar. Ele não. Ele gostaria que ela ficasse, mesmo que isso não significasse amor, ele queria-a por perto. Ela não. Estava decidida a partir para sempre.
- É o nosso último momento juntos... – Disse a garota quase que num sussurro. Sem coragem para fitar-lhe, ela olhava para a lua.
- Porque você quer assim. Eu gostaria muito que você ficasse... – A voz dele era trêmula, e seus olhos também fugiam de encarar a jovem.
- Não, é porque tem de ser assim. Se eu pudesse me dar ao luxo de agir como quero, tudo seria diferente, começando por esta passagem em minhas mãos.
- Tem certeza? Não vai se arrepender depois?
- Já estou arrependida, mas tenho certeza de que não morrerei por isso. - Ela ergue seu pulso e observa as horas em seu relógio. – Tenho que ir... Está na hora.
- Se é isto o que você quer... – Ele tenta fingir indiferença, algo que no momento, definitivamente, ele não têm.
- Sim, é o que eu quero e o que eu preciso. – Ela tenta fingir força, algo que no momento, definitivamente, ela não têm.
– É o nosso último momento, são nossas últimas palavras.
Ela já estava tornando-se repetitiva.
- É...
Ambos fitam o chão e permanecem em silêncio por alguns segundos que tinham o peso de décadas.
- Hey! – Era ela quem o chamava e agora encarava-lhe nos olhos com determinação.
- Que? – Ele ergue a cabeça pesadamente e lhe retribui o olhar.
- Te amo. Decidi que minhas últimas palavras deveriam ser exatamente aquelas das quais fugi durante estes dois anos. Aquelas que estavam estampadas em meu rosto e que eu lhe ofereci diversas vezes em todos os meus gestos... Sempre mascaradas, discretas e eufêmicas. Mas agora, te falo com todas as letras e com todo o peso que estas duas palavras podem carregar. Te amo.
Um sorriso fraco brotou-lhe nos lábios e seus olhos estavam reluzentes, como uma piscina de pura emoção. Ela imaginava que ele ficaria encabulado com as palavras... Que ele se sentiria intimidado... Mas, desta vez, realmente não importava. Ela estava se libertando.
- Eu sei – Ele riu. Não sentia-se assombrado pela sentença. Sentia-se terno e quase orgulhoso. – Brincadeira. Eu também te amo... – Sua voz agora perdera um pouco da segurança – Como amiga e só.
- Não, você não ama. Não confunda a sensação de dívida e culpa com amor. Sua declaração tem um tom desagradável de explicação... Ou desculpa esfarrapada, como preferir. – Seu sorriso agora era maior e ainda mais fraco e artificial.
Ele já não sorria mais. Pelo contrário, seu rosto era denso como um lençol amarrotado.
- Mas eu realmente gosto de você. Se não é amor, é o mais próximo disso que eu consigo chegar. Por favor, fique.
- Já disse, nunca será o bastante. – Pausa. Respiração profunda - Eu vou.
Ela levanta-se, pega sua mala, suspira profundamente e vira sua face em direção à lua. Silêncio e pensamentos desesperados por mais alguns lerdos segundos. Ela olha para ele novamente. Seus olhos estavam cheios de lágrimas e os dele também.
As lágrimas caem, escorrem pelas maçãs de seus rostos... Morreriam em seus lábios se não fossem tantas, mas a intensidade do fluxo fazia com que elas escorressem até seus queixos e pingassem no chão.
Eles se encaram por um momento.
- Adeus, dessa vez é pra valer.
Ele levanta e posta-se centímetros diante dela. Seria o momento perfeito para um beijo, mas não aconteceu.
- Então, adeus. Espero ter uma nova oportunidade e te encontrar em breve.
- Eu não.
- Isso só o tempo poderá dizer – Ele sorriu e piscou. Seus olhos ainda choravam, assim como os dela.
Ao ouvir isso, ela virou as costas e seguiu pela rua, dobrou a esquina e ele perdeu-a de vista. Mas antes de dobrar, a garota olhara para trás e seus olhos encontraram os dele uma última vez. Sim, isto significava que ela desejava voltar. Que mais do que tudo, queria poder voltar e atirar-se nos braços dele, como sempre fizera, mesmo sem receber o que desejava em troca... Mas ela não podia. E ela não voltou.
- Obrigado por tudo... Tudo mesmo! Você foi fantástica! – Disse ele para a rua já vazia, aquilo que não tivera coragem de dizer encarando-a nos olhos, porém mesmo que ela não estivesse mais ali, ele poderia jurar que ouviu sua voz sussurrar com uma doçura imponente ao pé de seu ouvido: “Tarde demais”.
Ficou parado no mesmo lugar, sentindo-se arrependido e triste por não poder retribuir o que ela tanto gostaria. Mas ele não podia. Assim como ela não podia voltar.
O quê os impedia? É uma ótima pergunta.
E graças aos seus medos e teimosias, sua história terminou assim. Uma despedida feia. Sem beijos. Sem amor (correspondido). Sem amizade (correspondida). E terminou num vazio. No mesmo vazio desastroso da soma de seus egoísmos. Enorme vazio. Terminou com uma garota que amava demais, indo embora para tentar afogar seus sentimentos na distância; e com um garoto arrependido por ter entendido tarde demais.

Foto por: Tuane Eggers

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Crack! Pude ouvir o racho do meu coração.
Não era o primeiro, portanto, o som não me foi tão perturbador como outrora fora. Me preocupava apenas um único fato: Já havia escutado tantos rachos como aquele, que me espantava o tamanho de meu coração. Como era possível haver tanto para quebrar?
Pensei que talvez os danos já estivessem se alastrando por minha alma; talvez eu estivesse quebrando inteiro.
Seria possível um homem ser tão despedaçado ao ponto de transformar-se em pó?
“Não seria tão ruim ser pó” – Pensei – “Eu seria leve. Sutil, até. Eu poderia me separar em tantos pedaços, que não custaria a ninguém manter uma parte de mim junto de si!”.
Somos sempre tão espaçosos! Queremos mais e mais! Queremos ocupar até mesmo os lugares que não são nossos. Se fossemos um jogo como aqueles que as crianças utilizam para desenvolver o raciocínio, onde elas tem que encaixar a forma certa no lugar certo, seríamos a estrela que se recusa a sair do lugar do quadrado. Pensando bem, talvez sejamos a criança teimosa que insiste em colocar a forma errada no lugar errado.
Crianças ou estrelas, somos contrários e contrariados; pelo menos eu sou. Mas, se eu virasse pó, a forma não seria mais problema. Pó é pó em qualquer lugar; é, inclusive, muito mais autônomo! Ninguém diz que o pó tem forma de estrela, mas sim, que a estrela está cheia de pó. É como não ser nada, mas guardar em si a capacidade para tornar-se tudo.
Se pensarmos bem, deve ser até gostoso ser reduzido a esse nada que, ao mesmo tempo, é tudo. Seríamos leves o bastante para sermos livres. Voaríamos com o vento!
Chega a ser irônico. Se eu fosse pó, eu seria tão grande que estaria em todos os lugares. Deixaria um pedacinho mínimo de mim em cada lugar do mundo. O resto dividiria entre as pessoas. Seria tão enorme que as pessoas sequer perceberiam.
“Isso explicaria muita coisa. Sofremos tantos danos ao longo de nossa vida, que penso que seja essa a sua função: Lapidar-nos assim como o mar transforma as rochas em areia.” – Pensava eu enquanto me desfazia da cabeça aos pés. Eu sumi. Sumi como poeira ao vento perdida na cidade.


Foto por: Tuane Eggers

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O Colecionador de Ausências

E novamente ele estava frio. Vazio como um rio que sofre com a seca. Mais uma vez ele estava esgotado de todo o caminho interminável percorrido em vão.
A tempestade chocava-se furiosa contra o vidro da janela, perturbando terrivelmente o sono do rapaz.
Será que um dia este ciclo vicioso teria um fim? Ele esperava que sim. Mais do que isso, ele queria acreditar com todas as suas forças que tudo aquilo, um dia, seria justificado. Ele precisava crer desesperadamente que algo muito especial lhe aguardava.
Afinal, qual seria o sentido de um longo período chuvoso, se não a enorme colheita de belas flores, na primavera? Se vivêssemos apenas sofrendo com a chuva, sem nunca admirarmos as flores, valeria a pena nossa tenra estadia aqui? Ele acreditava que não, e em resposta enfurecida, recusava-se a viver em vão. Recusava-se a meramente existir sem qualquer pretensão, pois melhor seria o nada absoluto, do que uma existência efêmera e inútil, nessa eterna caminhada sem um destino para alcançar.
Era preciso uma vida para abraçar e ser por ela abraçado; um cântico doce para acalmar uma noite de pesadelos tortuosos. Lá fora, a noite estava revolta como diversas outras vezes já havia estado, e sem conseguir dormir, imerso em tais pensamentos, ele sentou-se no chão de seu quarto e observou sua incrível coleção. Podia sentir uma espécie de prazer perverso dominar a sua mente, e não pôde conter um sorriso irônico.
Sua coleção era única. Unicamente cruel, mas unicamente sua. De alguma maneira bizarra, tudo aquilo que lhe faltava era exatamente tudo aquilo que ele possuía. Verdadeiramente, ele era o dono daquele nada.
Observou sua prateleira vazia e celebrou sozinho sua coleção de ausências. Podia ver claramente a ausência de cada expectativa. Cada objetivo não alcançado sorria para ele com grande intimidade. Cada vão não preenchido era terrivelmente inebriante, como a idéia de um anjo que não se pode ver e nem tocar.
“Anjos devem ser monstruosos” – Pensava ele – “Quase tão poderosos quanto Deuses, porém sorrateiros como uma brisa de verão”.
Ao mesmo tempo em que tremia de medo ao pensar em seres assim, sentia-se fascinado pela maneira como poderiam ser destrutivas – abusivas, até – tais criaturas. Ria sozinho diante da apavorante possibilidade de algo que nos é estranho e inatingível ter tanta influência sobre a nossa vida. Assim eram as suas ausências. Sorrateiras. Desastrosamente sorrateiras.
“Não somos nada além da marionete idiotizante que dança sobre o palco, manipulada por um mestre que sequer conhecemos o rosto e de quem nunca iremos nos livrar.”
Sentiu-se unicamente orgulhoso e unicamente esperançoso, enquanto deleitava-se em sua taça vazia. Decidiu enfrentar a chuva lá fora. Tremia. Sofria diante da água gelada, porém, aguardava ansiosamente pela chegada da primavera, que com certeza viria.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Soneto Renovado


É chegada a hora de viver de verdade;
Tempo para beber direto da fonte,
Sem espaços para remoer o passado,
Nem o futuro que talvez nunca chegue.

Agora, quero mesmo é um amor renovado!
Que me entenda e saiba ler as entrelinhas,
A palavra escondida; a verdade não dita,
Neste caleidoscópio onde nada é o que parece ser.

Quero muito mais do que um sonho para buscar,
A possibilidade de um dia alcança-lo!
Correr intensamente! O frescor do vendo batendo no rosto!

Quero três anos em um,
E ter de volta todo o tempo que gastei em vão.
Quero mesmo é o inédito cheiro da placenta.

Foto por: Tuane Eggers

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Conto de fadas

E é exatamente assim que essa história termina...
Sem felizes para sempre, sem nenhuma fada madrinha!
Sem mocinhos juntos no final,
Sem sorrisos, nem lições de moral.

Aqui o lindo castelo dourado
Acaba nas posses da rainha má,
E toda aquela bobagem de lealdade e dedicação
Acaba esquecida neste deplorável mar de víboras.

Nunca foi um conto feliz!
Nunca chegou a ser um dueto!
Nunca o mocinho conhecerá plenitude!
Nunca ele sentirá o gosto do reconhecimento!

Culpem os autores,
Que sempre nos iludem
Com seus repetitivos finais felizes!
Ou então ouse culpar a Deus,
Que mais uma vez esqueceu de olhar para outro de seus filhos desafortunados!

E é exatamente assim que a cortina se fecha,
Do espetáculo de falsidade, de ilusão e de morte!
De loucura, de auto-mutilação e de descontentamento.
De ciúmes, de traição e de veneno.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Sede

Diz o ditado que jamais devemos ir com muita sede ao pote. Por quê? Será que em nossa extrema afobação derramaríamos toda a água contida? Ou será que a beberíamos em tal gana, que seria como se ela jamais houvesse existido?
Imagino que este seja um dos meus maiores erros, do qual não consigo me livrar. Minha sede é intensa e minha alma não conhece saciedade. Meu apetite é voraz, um desejo feroz e sem limites.
Na verdade, um pote não me basta. Quero mesmo é uma fonte enorme para saciar essa sede mortal invertida. Invertida, pois não bebo como quem morre de sede, mas como quem vive.
Com o mesmo desespero primordial do bebê, que bebe o leite materno pela primeira vez: quente; diretamente do peito. Esse é o gosto primeiro que se tem na vida, auto-afirmativo que enfim estamos realmente vivos. Respirar e sentir os pulsos monótonos do coração, não basta. É preciso a certeza palpável. É preciso preencher qualquer vazio. Na alma. No estômago. Isso sim é coisa de gente viva.
O que quer que tenha nos criado, criou a boca como porta para quase tudo. Para entrar e sair. Beber e vomitar. Pela boca entra o alimento que sustenta a vida. Na boca começam as mais intensas sensações: é nela que bebemos o amor, a luxúria ou simplesmente companhia. Sendo assim, essa deve ser a função de um beijo: beber um pouco dos outros para sermos mais completos, ou menos vazios, como preferir. E é pela boca que expulsamos toda a raiva que macula a alma ou encantamos ouvidos com belas palavras de amor. Amor que é amigo. Amor que é amante. Amor que consola. Amor que ama. O amor que às vezes confunde. O amor que também machuca. Parece até um jogo louco. Uma loucura que tortura. Felicidade. Tristeza. Felicidade. Tristeza. A sede respira assim. É o sabor que docemente envenena, numa tal magnificência, capaz de escravizar pelo fascínio até mesmo a mais singela criatura.
Suponho que este seja o fino tecido de que é feita a vida, fechando o ciclo que nos faz buscar eternamente, nada além, daquilo que já temos pelo simples fato de existirmos: a sede de amar. Estupidez desgastante esta do sentido de viver. Sequer podemos generalizar, cada um de nós busca obsessivamente por uma face diferente da mesma coisa. Todos buscam saciar a sua sede , o que a torna o seu aniquilador caro e escasso.
Se alguém domina o mundo, deve ser um pouco sádico para assistir a todo esse caos e não ajudar com seus poderes ilimitados. Ou será que ele julga ser nossa a função de aprendermos sozinhos tudo aquilo que jamais nos foi ensinado? Será que realmente existe uma lição, que não fazemos idéia, mas devemos aprender?
Um ferreiro não pode fabricar tijolos, e nem um fotógrafo fazer uma cirurgia. É preciso exigir de cada um o que se pode dar, ou então ensinar-lhe aquilo que se espera. Não é justo punir um cachorro que não pode miar ou um humano que não consegue viver. É cruel demais dar apenas a sede, e nunca algo para se beber.
Carrego um fardo e não faço idéia do que se trata. Um dia ainda me enfureço e descubro o que é. Quebrarei as regras! Será que serei punido? Já fui. Já sou. É segredo, mas bisbilhotei-o e não gostei do que vi. É tão pesado que faz doer os meus pés e obriga-me a manter a cabeça baixa. Assim posso observar o caminho. Também não é agradável, geralmente é seco. Muito seco. Mas às vezes também tem água, então eu esqueço do trajeto por alguns instantes e molho meus pés doídos. Mais do que isso, banho-me inteiro. Bebo-a inteira! Minha sede atrapalha novamente e o caminho volta a ser desértico.
Não consigo me controlar! Bebo com meu corpo inteiro, numa devassidão que esgota! Cada partícula de mim clama por vida. Não me conformo em simplesmente existir. Preciso viver. Preciso sentir. Viver é sentir, mas deveria sentir-se algo bom. Queria tanto acreditar que a gente não morre em vão! A idéia de um paraíso para depois me apavora. Por que depois? E da vida, o que fazemos?
Melhor reformular: Queria tanto acreditar que a gente não vive em vão... É isso. O segredo é não viver em vão. Morrer não importa, pois mesmo que a plenitude existisse só depois da morte, então depois da morte seria a vida.
Porém não posso esperar. Nem quero... Recuso-me! Vou viver agora! Ao menos vou tentar. Vou correr! Pular! Gritar feito um doido!
Fugir, com a mesma fúria de um bárbaro, em busca de um caminho diferente. O meu caminho. Fugirei rumo a um oceano tão infinito que seja capaz de suportar a minha imensa sede.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Segredo

Degustarás meus lábios á beijar-te,
Furtivos, escorregadios,
Alimentando-se de toda a vida
Contida em teu hálito doce.

Sentirás meu olhar
Arrancando, até mesmo, a tua pele
No irrepreensível anseio,
De conhecer-te por completo.

Ouvir-me-á emudecer em gritos silenciosos,
Clamando quietos por teu nome,
Com a mesma cega obsessão
De quem faz uma prece.

Se puderes concentrar-te,
Poderás sentir, à noite,
Minha alma roçar na tua,
Minha mente indagar à tua,
Tentando adivinhar profanamente
Teus pensamentos mais profundos.

Em meu intenso desespero
Disfarçado de coragem,
Meu irrefutável desejo,
Fantasiado de amizade,
Entrego-me de corpo e alma
À esta terrível dúvida que me atormenta.

Foto por: Tuane Eggers

sábado, 30 de maio de 2009

Sincronia

Como a lua e as estrelas
Pela noite à brilhar,
Como o peixe destemido
Que se perde pelo mar.

Como as flores pelos campos,
Como a planta e a raiz;
Majestoso é seu encanto,
Seu perfume em meu nariz!

Somos trem e passageiro,
Na estação à esperar,
A distância nos tortura,
Mas os passos sempre almejam se cruzar!

Duas almas que se assistem,
Corações em rendição,
Esperando o momento...
A perfeita condição!

Todo medo já não existe,
Ansiedade em seu lugar;
São dois lábios entreabertos,
Tão frenéticos; despertos!
Desejando para sempre se encontrar.

Foto por: Tuane Eggers

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Soneto do amor mudo


Amor aquele que não ouso dizer o nome,
Que me devora, que machuca e que consome!
Amor aquele que arranca, que levanta e que acende,
Que tortura... Amor aquele que censura, em estado renitente.

Amor àquele que não ouso dizer o nome,
Que é crescente e progressivo;
Que me prende e faz de mim refém,
De seu próprio esplendor e gigantismo.

Amor aquele que não ouso dizer o nome,
Que me perverte...
Amor aquele que me diverte e faz-me morrer.

Amor aquele que insiste em permanecer mudo,
Que revela-se e para mim é tudo,
Absoluto sobre todo o meu querer.


Foto por: Tuane Eggers

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Soneto do desejo

Tudo o que eu queria era abraçar-te desesperadamente...
Apertado... Envolvente!
Sentir tua respiração acariciar minha nuca,
E gritar bem alto as palavras que me sufocam e fazem teu ego estremecer.

Tudo o que eu queria era dar-te o tapa,
Com a força da mão massacrada,
Com a raiva do ciúme infundado,
Com o ódio que arrependido, se recusa a ficar.

Tudo o que eu queria era beijar-te nos lábios,
Com o amor intenso e incendiado,
Com o apetite voraz de um desejo sem limites.

Tudo o que eu queria era liberdade de te odiar.
Mais ainda, queria a prisão de poder te amar!
Fugir. Mas os pés teimosos sempre insistem em voltar.

Foto por: Tuane Eggers

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A monotonia e o mundo

Hoje acordei estranho... Sentimento clássico de vazio existencial, sabe? E foi exatamente por estar tomado por um sentimento tão blasé, que eu despi minha alma diante desses lápis e caderno.
Blasé... Démodé... Palavras tão estrangeiras quanto este grito adolescente por algo que não entendo.
Talvez sentimentos tão profundos não devessem ser escritos. Intimidade sem espaço para divisões... Mas hoje decidi que quero ir um pouco mais além. Muito mais do que escrever, quero a seriedade de jurar! Quero a liberdade de me derramar inteiro, gota por gota até encher, mesmo que por alguns segundos, o mundo com meu puro egocentrismo. Sei que não conseguirei, mas mesmo assim quero a oportunidade de tentar.
Pensei em tudo o que sinto... Pensei naquilo que eu sou e não consigo transcrever. Muito daquilo não tem nome. Muito daquilo é vertigem pura, o que me assusta um pouco. O desconhecido me assusta, e isso me torna ainda mais clichê.
Não sou como o soldado ansioso que vai para a guerra com o objetivo cego, mesmo que muitas vezes contra sua vontade, para matar ou morrer da maneira mais precipitada possível. Eu não. Prefiro as sutilezas do mundo. Prefiro a viscosidade quase obscena da língua e toda a sua perfídia. Prefiro a aparente inocência da palavra que instala-se no inconsciente... Na alma! E este é o verdadeiro estrago. Este é o verdadeiro domínio. Aquele contra o qual não há defesa. É tão satisfatória a vitória que não se percebe!
Não me anuncio, me insinuo. Sou a torneira que goteja inofensiva e vagarosamente alaga. Na surpresa... Na surdina. Sou exatamente como o balão cheio de ar no exato momento em que estoura pelo excesso. Não me contenho! Sou do mundo e ao mundo me entrego, e é de todo o excesso gritante, aquilo tudo que só faz extravasar, que tiro a experiência e o aguçado entendimento, apenas no silêncio de um olhar... Sim, eu realmente estou convicto de que sou o mundo. Assim como cada um de nós. Mas sou um mundo tão pequeno, que suporto muito pouco, se comparado à grandeza com a qual o mundo poderia me completar. Sou finito. Limitado por apenas uma vida que não é o bastante. Nunca é. E ao sopro que me estoura, chamo sentimento.
Sentimentos são quase como bolhas que estouram pelo ar, ou talvez até sejam parecidos com um raio. Primeiro enxerga-se o relâmpago, somente luz sem grande intimidação, depois escuta-se o barulho ensurdecedor do trovão... O mesmo barulho medonho que põe as crianças assustadas debaixo da cama.
Ah, Sentimentos são tão inconstantes! E é somente quando escrevo que me sinto um pouco mais duradouro do que uma ínfima batida de coração. Batida. Choque. Chocam-se meus ideais com minha realidade, Meus pensamentos com meu cárcere privado. Tudo explode-se em fogosa e desconcertante confusão. Fogo. E todas as pontes, ou qualquer morada sólida, consomem-se em chamas; como num lindo show de fogos até o alvorecer! Mas dos fogos sobram as cinzas, e com elas ninguém se importa.
Sou diariamente abusado pela besta que me devora e culpa-me pelo desejo imposto e reprimido; a eterna fome de fruto proibido, aquele que meus lábios jamais irão provar.
Não desejo muito, nem espero que o mundo me compreenda (Aliás, o mundo me compreende, nos damos muito bem. Refiro-me as pessoas, essas sim são difíceis de lidar). No fundo, bem no fundinho mesmo, espero apenas que um dia a aurora chegue mostrando a beleza viva do dia, sem acabar com a tranqüilidade serena da noite.

Foto por: Tuane Eggers

terça-feira, 26 de maio de 2009

Analgesia














Hoje dói como nunca.
Teu nome é ferida aberta em minha carne
E minhas vísceras expostas exalam um odor desagradável.

Não é belo o que te ofereço.
Aliás, não é comum.
É único.
Mas é estranhamente verdadeiro,
Friamente obsceno.
Puríssimo e já pútrido sentimento de amar!


Deus do céu!
Por quê criastes algo tão maravilhoso
E ao mesmo tempo tão devastador?
Dir-me-á que é castigo,
Ou que este paradoxo é apenas mais uma
Das desgraças que fogem de teu controle?

O que pode fazê-lo parar?
Que veneno mata um sentimento sem pudor?
Que analgésico conseguiria aliviar
A dor...?
Dor delirante de profano amor!

Foto por: Tuane Eggers

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A prostituta

Há muito, seu corpo era apenas uma festa. Uma festa vulgar como qualquer outra, onde as pessoas entravam, divertiam-se, deleitavam-se e iam embora, sem sequer olharem para trás, quando o prazer chegava ao fim. Já não era um destino, era um caminho. O motel na beira da estrada. Efêmera, mas não como um amor. Como um orgasmo. Era um campo tão fustigado; tão pisoteado que já não era nada, se não, terra infértil.
Era madrugada, e ela, ao invés de dormir, estava voltando para casa, com seu velho sobretudo preto e uma cigarrilha queimando entre os dedos. Sentia-se cansada de tanto caminhar e sentou-se no banco do terminal rodoviário por onde passava. Olhou para os lados, naquelas alturas da madrugada não existiam muitas pessoas por ali: apenas algumas poucas que, como ela, guardavam histórias incrivelmente interessantes e obscuras sobre o rumo peculiar de suas vidas.
Em um canto estava deitado um pobre mendigo que dormia tranquilamente. Mesmo passando frio. Mesmo sentindo medo. Mesmo não querendo mais acordar. Como poderia aquele homem ser tão relaxado a ponto de dormir ali? A verdade é que ele não dormia por sono e tranquilidade, dormia por um cansaço avassalador: por pura exaustão; pensava ela. Sentiu compaixão daquele ser. Desvendara sua mente, invadira seus sentimentos mais profundos. Talvez o estivesse julgando erroneamente, talvez não; mas, de fato, havia se envolvido de uma maneira muito mais profunda, com ele, do que com seus diversos clientes daquela noite.
Tragou a cigarrilha e caminhou com passos leves até ele, enquanto despia seu casaco. Delicadamente, pousou-o sobre aquele homem, tendo todo o cuidado para não acordá-lo. Fizera algo que poderia ser chamado de “boa ação”, mas não conseguiria suportar se fosse reconhecida por isto.
Sem seu casaco, percebeu como estava frio. Tremeu um pouco, mas recusou-se a se arrepender do que fizera. Sentou-se novamente no mesmo banco, alisando-se com seus braços na tentativa de produzir um pouco de calor. Tragou a cigarrilha novamente, sentiu a fumaça quente espalhar-se em seus pulmões e então soltou-a. Com seus olhos, vasculhou mais uma vez o lugar procurando outra história; outro ser digno de sua atenção, que por mais indigna que fosse, era sua.
Viu outras mulheres que, como ela, também vendiam o seu amor. Não se deteve nelas, não porque não fossem interessantes, mas porque eram complexas demais, pois, apesar de saber que eram tão complexas quanto qualquer outro ser humano e suas vivências, o fato de incluir-se naquele meio tornava-a imparcial em seu julgamento. Sorriu, tragou e desviou o olhar. Acabada aquela cigarrilha, acendeu outra e fumou para manter-se aquecida.
Viu pessoas esperando por um ônibus. Iriam viajar, talvez, para longe dali, talvez buscando uma vida melhor, talvez para visitar pessoas queridas ou talvez por puro lazer. Sentiu uma ponta de inveja. A mesma inveja que sentia sempre ao ver um pássaro voar. Um vira-lata vagando pela cidade. A fumaça que saia de sua boca. Um balão de gás que escapa das mãos de um menino descuidado e sobe livremente, como um dia ela havia presenciado. Naquele dia, não pode conter um riso gostoso de prazer ao olhar para aquele balão amarelo cheio de liberdade.
Gostava de fechar os olhos e imaginar-se como uma linda águia ganhando os céus, subindo no topo da montanha mais alta e cantando com toda a sua voz, mesmo que não soubesse cantar. Ah! Como era delicioso sonhar com liberdade!
Tragou novamente e observou o banco onde estava sentada. Era velho. Sujo. A madeira estava riscada e era possível ler diversos nomes, frases e símbolos ali gravados. Todos deixados por pessoas que um dia haviam passado por ali, talvez, sentadas no mesmo lugar onde ela estava agora. Algumas felizes, outras desesperadas. Algumas, provavelmente, haviam dormido ali, talvez durante dias. Quantas pessoas aquele banco não havia descansado e visto quando partiram como se nunca houvessem existido? Essas pessoas deixaram suas marcas e foram embora deixando-as para trás, com uma total indiferença. Mas elas ainda continuavam ali, mesmo após tanto tempo.
De repente, foi como se tivesse visto seu próprio rosto naquele banco. Quanta coisa tinham em comum! Quantas partidas haviam amargado! Quantas ausências haviam chorado! Ambos tinham a mesma sensação de passageiros e desnecessários. Ambos eram, primeiro, convenientes; depois, úteis; e, por fim, já não eram mais nada.
Tragou sua cigarrilha e deitou-se naquele banco. Sentiu-se abraçada. Amou e em troca sentiu-se amada. Não estava mais em um banco, estava com um amigo. Talvez até mais do que isso: Estava enamorada! Encontrou naquele banco seu par único no mundo. Encontrou nele a única pessoa que seria capaz de entende-la. Sentiu prazer como jamais havia sentido com qualquer homem em anos de profissão.
Enfim, dormiu. Não como o mendigo, por exaustão, mas sim devido à enorme paz e segurança que sentia em seu peito. Acordou quando os primeiros raios de sol tocaram sua pele. Sorriu. Sorriu sinceramente, sentindo-se incrivelmente bem e descansada como há tempos não se sentia. Entendeu que era feliz. Que a felicidade, não estava em lugar algum, que não dentro dela mesma: Afinal, onde mais encontraria prazer maior se não em si própria? No banco, descobrira a si. Entendeu que não era sozinha, ou que pelo menos, não seria sempre assim.
Encheu-se de esperança, levantou e voltou para casa. Tomou um banho, a alma já estava lavada, agora faltava o corpo. Sentiu-se acariciada pela água quente, envolvida pela toalha macia e cobriu a nudez de seu corpo com roupas novas e bonitas. Saiu novamente para tomar um café; decidiu tomar o caminho pela beira da praia.
Entrou no café. Pediu um cappuccino e tragou outra cigarrilha. Estava lendo o jornal, quando o barulho da sineta pendurada à porta desviou sua atenção.
Um homem entrou. Era jovem, bonito e usava um belo chapéu panamá preto. Ela sorriu para ele. Ele sorriu para ela e andou em sua direção, perguntando gentilmente se poderia sentar-se em sua mesa. Ela aceitou animadamente, não estava acostumada a tanta cortesia. Juntos, conversaram, deram risada, falaram sobre tudo e até trocaram olhares maliciosos. Quem era ele? Talvez mais um cliente, talvez não.

Foto por: Tuane Eggers

domingo, 24 de maio de 2009

O ladrão de estrelas

A noite era escura. Tão escura quanto uma noite poderia ser, se não fossem pelos pequenos pontos luminosos, por nós chamados de estrelas, que brilhavam em seu manto negro. Eram lindos. Especialmente quando vistos através das janelas fechadas de seu quarto fechado.
Durante os dias, ele dormia profundamente. Mas, quando o sol se punha, sentava-se diante do vidro e olhava para o céu durante a noite inteira. Dia após dia, ele dormia e noite após noite, ele sonhava acordado.
Observara as estrelas durante tanto tempo a fio, que já as conhecia de cor. Conhecia-as de tal maneira, que havia até mesmo nomeado algumas delas: alguns dos seus pontos luminosos, como gostava de as chamar. E todas as noites o menino velava por eles. E todas as noites os seus pontos lhe lançavam um brilho especial, cada vez mais intenso.
Admirado, o menino resolveu pegar um deles para si. Encorajou-se durante noites, e a cada noite que ele não realizava seu desejo, os pontos brilhavam mais e mais, como se estivessem prestes a explodir. Brilhando, os pontos urravam para que ele os tomasse, e sonhando o menino implorava para que um dia tivesse coragem de ir ao seu encontro.
Ensaiou-se, e de repente, num surto de coragem, quebrou a janela do seu quarto e jogou-se janela abaixo, sem se importar com a altura por ele desconhecida. Ficou surpreso: Não caia, voava! Não chorava, sorria! Não temia, deleitava-se. Aproveitou a liberdade no céu noturno durante algumas horas, observou seus pontos de perto. Cheirou-os. Acariciou-os. Abraçou-os, e, então, sorrateiro como uma sombra, pegou um e escondeu sob sua camiseta, rente ao peito.
O objeto brilhava intensamente! Brilhava tanto, que quem o vira passando naquela noite poderia jurar que havia visto um anjo de coração dourado! Amou tanto aquele ponto, que decidiu guardá-lo para sempre junto de seu coração e, juntos, ambos brilhavam: Estrela e coração. Não havia mais como separá-los. Não sabia o que era, mas sabia que seu desejo de possuí-lo era maior do que sua própria razão. Já não era mais um desejo, era uma necessidade torturante! E assim, todas as noites, nosso pequeno ladrão de estrelas continua adicionando mais um ponto brilhante à sua coleção... Dentro do seu coração.

Foto por: Tuane Eggers

*1° lugar na categoria contos, no concurso literário Novos talentos - Escritos e Escritores II, promovido pela Alivat - Lajeado/RS