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sexta-feira, 18 de junho de 2010

A pintura

Algumas manhãs ensolaradas parecem pintadas pelo próprio Deus apenas para mostrar-nos a maestria com que somente um grande mestre é capaz de produzir a verdadeira arte. O sol, a natureza, o homem e tudo mais que é belo neste mundo deveria ser assinado diretamente pelo grande criador, só assim seríamos capazes de perceber o mundo como este museu enorme, cheio da mais fina beleza por todos os lados e sentirmos o regozijo por fazermos parte de tal galeria. Aquela manhã era mais uma dessas preciosidades, ainda mais emoldurada daquele lindo parque no centro da capital.
Passos vão, passos vem: muitos ignoravam o espetáculo que acontecia ali, mas outros pareciam entender a jogada e esforçavam-se para compor aquele cenário e ter sua parte na grandeza do mestre. Ela era um deles, ele apenas mais uma centena de passos apressados.
Jean estava indo para o cursinho, como qualquer jovem de dezoito anos com aspirações de graduar-se em uma universidade federal, quando decidiu seguir por outro caminho que não lhe era usual nos dias comuns. O caminho era mais longo, mas o menino não tinha pressa, afinal, queria curtir aquela agradável manhã de inverno: era raro encontrar um dia tão belo, ensolarado e de clima tão ameno naquela época do ano. Todos na rua pareciam melhor humorados! Foi como se o mundo tivesse combinado despertar feliz e tornar-se muito mais aconchegante. As pessoas sorriam, caminhavam, respiravam com mais vontade, caminhavam, viviam e caminhavam para seus diversos destinos. Estava caminhando pelo parque, como milhares de outras pessoas, quando se deparou com ela, parada.
Sofia, saiba-se que este é o nome dela, estava sentada sobre um banco, de pernas cruzadas, lendo um livro. Não estava simplesmente parada: estava esculpida, pintada, acabada e retocada pelo mestre: vestia um lindo casaco roxo, com uma camisetinha preta leve por baixo, calças pretas justas, uma boina e um cachecol vermelhos. Mantinha os olhos fixos no livro em suas mãos, com a cabeça inclinada, de maneira que seus cabelos negros lhe caiam sobre as faces levemente rosadas e uma pele alva. Tudo isto sob a luz divina daquele sol, que lhe dava um ar quase angelical.
Admirou-a durante alguns segundos e voltou a caminhar, seguindo seu caminho e aproximando-se cada vez mais da menina. Para sua surpresa, como se ouvisse seus passos, ela voltou seu rosto em direção ao rapaz e olhou fundo nos olhos, prendendo-o atencioso à sua face. Aqueles olhos! Quando foi fitado por eles, Jean teve de segurar-se para não ser tragado pela imensidão azul daquele olhar: de repente entendeu o que Machado queria dizer com “olhos de ressaca”. Seu olhar era profundo, decidido e tão cheio de sentimentos, que o jovem duvidava que alguém um dia fosse capaz de descobri-los completamente. Diria que foi encarado propositalmente, se não fosse pelo sorriso sem jeito que brotou nos lábios da garota, a respiração nervosa e as bochechas rosadas que antecederam um tímido “oi”. Não sabia como reagir, então retribuiu o cumprimento e seguiu seu caminho, dando as costas para ela.
Estava quase fugindo quando sentiu o doce perfume que a menina exalava acariciar seu nariz, assim como sentia seus olhos acariciarem sua nuca. Voltou-se novamente na direção da menina, mas ela não o olhava, continuava sua leitura. Criou coragem e decidiu abordá-la.
- Bom dia!
- Bom dia. – Desviou aqueles olhos de seu livro e observou-o com interesse no olhar e timidez no sorriso.
- Posso me sentar um pouco?
- Claro. – Disse movendo-se graciosamente para o lado para que o jovem pudesse acomodar-se no banco, ao seu lado.
- Bela manhã... Há tempos não tínhamos um dia tão gostoso.
Os olhos de Sofia pareciam rir gostosamente de sua tentativa medíocre de puxar um assunto falando sobre o clima e divertiam-se de sua fuga aos lugares comuns.
- Sim. Um ótimo dia para dar um passeio e ler um bom livro – Sua voz foi doce e humilde, demonstrando uma apreciação sincera daquele dia, assim como do papo.
- Concordo. Que livro está lendo? - Aproximou um pouco o rosto para poder ler o título.
- Uma antologia de Vinícius de Moraes.
- Adoro Vinícius de Moraes! – Mentira! Na verdade, conhecia apenas o nome do autor por ouvir falar em algum lugar.
- Ele é ótimo! – Em seus lábios, a menina mantinha um sorriso comedido, mas seus olhos gargalhavam ainda mais, como se o houvessem flagrado. Jean começou a sentir-se um pouco desconfortável diante daquele olhar tão intimidador, porém considerou que provavelmente fosse impressão sua e afastou a idéia de sua mente.
- Sim. Que poema está lendo? – Aproximou-se dela e olhou por cima de seu ombro os últimos versos do soneto, decorando-os rapidamente.
- Soneto da fidelidade, meu favorito.
- Ah, claro! Que não seja imortal, posto que é chama...
- Mas que seja infinito enquanto dure! – Sofia completou e corou instantaneamente, tornando-se ainda mais bela, se é que isto era possível, aos olhos de seu novo admirador.
- Lindo! – Maravilhou-se – Esqueci de me apresentar... Meu nome é Jean.
- Sofia, prazer.
- Sofia... É um nome poético. – Jean tentava agradá-la artificialmente, mas ela parecia estar gostando mesmo assim e lhe permitia ir um pouco mais além. Ele sentia que estava progredindo.
- Gostei de você! – A sensação de que a havia conquistado tornou-o mais confiante e jovial. – Que tal caminharmos um pouco?
- Desculpe, mas hoje não vai dar.
- Por quê?
- Eu tenho que... Compromissos. – Sua voz era insegura, mas novamente contrastava com seu olhar decidido.
- Entendo. E o que me diz de amanhã ao meio dia?
- A-amanhã?
- Sim!
- Eu...
- Combinado. Almoçaremos juntos naquele restaurante ali na esquina e depois, se nunca mais quiser me ver, eu entendo. – Sofia permaneceu em silêncio, perplexa – Por favor.
- Está bem. Farei o possível – Suas faces estavam quentes e vermelhas, como poucas vezes Jean vira uma garota corar. Achou o ato gracioso e sorriu ainda mais ao admirá-la.
- Então, vou indo. Até amanha, Jean. – Disse Sofia enquanto levantava-se e oferecia-lhe a mão.
- Até! E não ouse faltar – Riu e deu-lhe um abraço, ao solta-la, Sofia saiu quase fugindo, sentido o coração vibrar com as fortes atitudes do rapaz.
Jean observou-a sumir do campo de visão e ficou algum tempo sentado naquele banco digerindo o resto da presença dela que permanecia ali. Estava encantado! Havia conhecido uma pessoa magnífica como um anjo, em uma cena digna de um filme. A conhecera e, aparentemente, tudo estava indo bem! Talvez no almoço do dia seguinte a tivesse nos braços, talvez levasse mais um tempo, mas, de qualquer maneira, sabia que a teria em algum momento.
Entretanto, o dia durou uma eternidade e não teve nenhum acontecimento que não pudesse ser resumido em uma palavra: Jean, para Sofia e Sofia, para Jean. Estavam cada vez mais ansiosos conforme aproximava-se o momento do esperado almoço! Ambos preparam-se com suas melhores roupas, perfumes e intenções para não dar vexame e, na hora marcada, encontraram-se no local marcado. Jean chegou primeiro, por cavalheirismo e observou-a entrar pela porta: olhos enérgicos e alma quieta. Para variar, estava linda! Sofia também localizou-o logo e agradeceu silenciosamente pelo fato de ainda tê-lo por perto. Ele estava ali, para variar. Felizes, sentaram, almoçaram, conversaram, despediram-se e não se beijaram; apenas marcaram outro encontro para o dia seguinte.
E no dia seguinte marcaram outro e depois outro e depois outro e depois outros, cultivando a relação aos poucos, até que, na saída do cinema, chegou, inesperadamente, o convite tão esperado:
- Hoje meus pais viajaram, então convidei alguns amigos para irem lá em casa passar a noite...
- Isso é um convite? – Respondeu Sofia sorrindo com naturalidade e singeleza, já estava perfeitamente à vontade na presença de Jean. Da timidez, havia ido embora o silêncio e sobrara a doçura.
- É uma intimação. Eu cancelaria a festa, se você não estivesse lá. – Jean também sentia-se perfeitamente bem na presença dela e, ainda melhor, na mira daquele olhar enigmático e invasivo.
- Sendo assim, eu vou. – Lisonjeando-se com a galanteria.
- Jura?
- Jamais voltei atrás com minha palavra.
- Ótimo. Deixe-me adivinhar a bebida com que devo lhe esperar: Martini, é a sua preferida, certo?
- Às vezes sim, às vezes não. Hoje não. Espere-me com um vinho.
- Como quiser. – Sofia sorriu novamente e fugiu do silêncio constrangedor que estava começando a se estabelecer - Então, acompanha-me até a parada, cavalheiro?
- Sempre! E não saio de lá até o ônibus sumir de vista.
Seguiram juntos até a parada e quando estavam se despedindo, após ser fortemente abraçado por Sofia, um hábito que a menina adquirira e repetia com relativa freqüência, Jean confirmou:
- Às 20h lá em casa!
- Às 20h. – Embarcou e ambos foram para suas casas.
20h: Sofia chega, sentindo-se pouco a vontade naquele ambiente desconhecido, estava sentada e quieta, enquanto seus olhos passeavam pelo interior do apartamento e dos amigos de Jean. Todos tentavam animá-la, desinibi-la, mas Jean sabia que não seria tão fácil assim e Sofia sabia o que esperava daquela noite, o resto lhe era irrelevante.
A noite foi longa! Todos beberam e falaram pelos cotovelos; todos menos Sofia, que estava tão sóbria quanto quieta, mas, ainda assim, era o foco da atenção de todos naquela sala: estava seduzindo-os silenciosamente pela distância e pelo olhar, ganhando assim mais dez admiradores. Dessa maneira as horas passaram-se e juntamente com o despertar do dia, despertou Jean, homem de Sofia, e, por iniciativa do rapaz, beijaram-se pela primeira vez.
Uniram na carne aquilo que já estava unido na mente e no coração. Escorregaram um para dentro do outro, como escorregava sua saliva e sua língua. Juntos escorregaram para dentro do quarto, onde seus sexos escorregaram para fora de suas vestes e uniram-se, finalmente, para concretizar a união completa. Amaram-se durante as primeiras horas da manhã, emoldurados pela aurora maravilhosa que estava exposta além da janela fechada e após o orgasmo e os gemidos de satisfação de suas almas deitaram-se face a face, respirando fundo e sorrindo bobos durante alguns minutos.
Então, vagarosamente, o silêncio veio tomando forma, tomando o quarto e, por fim, tomando-os. Ela fitou-lhe nos olhos, com olhos seus profundos e cheios de dúvida e, abruptamente, quebrou o clima sereno e o silêncio gélido que se instalara:
- Quando foi que você desistiu de mim?
Ele assustou-se e fez menção de negar aquilo e falar-lhe como havia adorado a noite, mas ela apenas acenou com a cabeça, olhou-o com incredulidade: de repente parecia muito mais forte. Jean sentiu-se obrigado a falar a verdade ou seria desintegrado pelo poder esmagador daquele olhar.
- Quando te vi entrar por aquela porta... – Falou no mesmo tom de voz fraco e sem jeito como o de uma criança que confessa que cometeu um erro.
Sofia simplesmente sorriu, naturalmente, confortável com a situação e disse com certa animação, como se concordasse com aquilo:
- As coisas sempre parecem melhores do lado de fora, não?
A naturalidade alegre com que ela dizia aquela frase que sentenciava seu relacionamento fez com que Jean sentisse um arrepio de pena e tristeza. Como poderia ela, Sofia, aceitar uma verdade tão ruim com tanta disposição, quando ele estava sentindo-se tão mal? Outra idéia lhe ocorreu e decidiu devolver-lhe a pergunta, muito sem jeito e com aquela mesma voz fraca e arrependida:
- E você?
- Eu o que?
- Quanto à pergunta que você me fez agora...
Sofia riu e fitou-lhe com força e interesse. Seus olhos não o iriam poupar da responsabilidade em assumir suas verdades e dizer aquilo que estava em seu interior, mesmo que a idéia lhe fosse incômoda.
- Que pergunta?
Jean hesitou durante um momento.
- Você... Também desistiu de mim?
- Sim. Eu deveria ter necessidade de ti, mas eu não tenho. – Respondeu com simplicidade, como se lhe houvesse perguntado se sentia frio ou gostaria de um pedaço de bolo.
- Quando? – A resposta doeu.
- Quando lhe beijei pela primeira vez e confirmei a verdade que já estava explicita em seus olhos: você também não tem aquilo que procuro.
Beijaram-se mais uma vez e conversaram durante alguns minutos sobre a cama, quando Sofia resolveu levantar-se e vestir suas roupas, arrumando-se para ir embora.
- Está na minha hora.
- Ah, fica.
Sofia riu gostosamente.
- Por quê? Acabou de dizer que desistiu de mim. Aja conforme suas idéias, não conforme costumes.
- Só tentei ser gentil.
- Não tente. Tchau.
- Tchau. – Jean continuou deitado.
- Não vai abrir a porta para mim?
- Não devo tentar ser gentil.
Sofia gargalhou novamente.
- Não. Deve ser gentil! Vamos, abra a porta.
Levantou-se da cama, ainda nu e levou-a até a porta. Antes de ir embora, Sofia abraçou-lhe, como sempre costumava fazer e disse:
- Não fui feita para chegadas, mas sim para partidas. - Saiu tranquilamente, desceu o elevador e ganhou a rua em direção à sua casa. Ao observá-la pela janela, Jean ficou perplexo com a súbita frieza daquela menina tão linda e delicada; sentindo-se ainda pior. Logo ele, que havia desistido por vontade própria, sentia-se extremamente culpado.
“Dois vazios juntos jamais se completariam, apenas somam-se deixando um vácuo ainda maior.” Pensava ele vendo-a partir – “Ela foi tão natural. Tão à vontade! Parece tão íntima de despedidas! É triste.”
Sentiu como se ainda tivesse aquele olhar de esfinge fixado sobre e si e sentiu um calafrio. Sentiu vontade de chamá-la de volta, mas existem coisas que não foram feitas para serem repetidas, portanto, conteve-se.
Não conseguiu concentrar-se durante o dia inteiro e não foi capaz de pregar os olhos durante a noite com imagem daquela jovem menina, aparentemente tão frágil e correta, como se houvesse sido feita para ser amada e fazer feliz a todos que a cercassem, e a maneira como havia terminado. Era como a mais bela flor, do mais belo cactos, perdida no mais seco e isolado deserto: linda, porém sozinha. Exalava vida e inspirava amores, mas por dentro era morta. Era mãe estéril, incapaz de gerar coisa alguma.
Sofia também sofria, apesar de conformada, não pode deixar de sentir alguma esperança de que finalmente houvesse chegado sua vez. Queria punir-se por haver permitido tal aproximação e fugiu o mais rápido que pode. Não entendia como o havia perdido e o pior de tudo era que sequer poderia culpá-lo, pois também não sentira nada. Mesmo mantendo-o preso entre seus quatro lábios, ele fugira por algum lugar. Mesmo dentro dela, estavam distantes. Mesmo deitado quente e sudorético sobre ela, ambos sentiam frio. Respirou fundo e, como aprendera certa vez em um filme, descartou sua frustração e seguiu em frente. “Serei feliz quando chegar a minha vez. Não é preciso ter pressa.” – Pensou.
A manhã seguinte foi ensolarada e junto com a aurora veio a rotina e a normalidade de suas vidas, como se nunca houvessem conhecido-se e rejeitado-se. Os passos de Jean caminharam pela mesma praça, seus olhos olharam para o mesmo banco e lá estava ela na mesma posição, lendo o mesmo soneto no mesmo livro, sob a mesma luz que a deixava lindamente estonteante. Ela voltou o rosto em sua direção como se tivesse ouvido seus passos, sorriu o mesmo sorriso e sussurrou o mesmo “oi” com a mesma timidez musical, fitando-o com o mesmo olhar magnífico. Jean apenas riu da situação e acenou com simpatia, seguindo seu caminho e perdendo-se solitário entre os passos que preenchiam a cidade.

Foto por: Tuane Eggers
Ilustração por: Virgílio Neto